Os Estados Unidos têm o mais alto índice mundial de armas de fogo per capita (o Iêmen vem em distante segundo lugar) e a maior incidência de mortes por armas de fogo no mundo desenvolvido.
No entanto, um misto tóxico de história, cultura, política e dinheiro impede o país de restringir significativamente a propriedade privada de armas de fogo – e vai continuar a impedi-lo.
A águia é um símbolo da América, mas teria sido igualmente apropriado se tivéssemos escolhido uma arma de fogo – especificamente, um rifle de cano longo da Pensilvânia ou do Kentucky.
Essa arma de alto grau de precisão, aprimorada por armeiros alemães imigrantes, permitiu que colonos europeus caçassem animais em florestas extensas, comerciassem e lutassem com indígenas americanos e combatessem seus inimigos franceses e britânicos, mais fortemente armados e tradicionalmente mais bem organizados, com disparos de longo alcance.
O fato de atiradores coloniais de elite terem ajudado a conquistar a independência dos EUA não quer dizer que os americanos de hoje devam ter o direito de comprar 12 pistolas Glock por ano.
Mas nossa história, em que as armas de fogo sempre tiveram presença grande, foi manipulada e convertida em propaganda potente por, entre outras, a poderosa National Rifle Association (NRA – organização que representa a indústria de armas de fogo).
Assim, o mito do nascimento do país ainda conserva muito poder de fogo emocional. Quando eu era repórter no Kentucky ou no Tennessee, entrava em muitas casas – em muitas residências prósperas – nas quais um rifle de cano longo ficava exposto sobre a lareira na sala de estar.
No passado, o rifle era colocado ali para estar ao alcance fácil para momentos de necessidade; hoje, ocupa esse lugar por uma questão de orgulho, patriotismo e filosofia libertária.
“É uma questão de poder. Do poder do indivíduo de decidir por ele próprio”, disse o historiador Craig Shirley, defensor da NRA.
Nenhum outro país tem história igual. Consideremos a Austrália, outro país enorme com passado violento, mas que conseguiu uma redução grande nas armas de fogo. Ela não tem o mesmo DNA que os EUA.
Os aborígines australianos não eram tão organizados ou antagônicos aos invasores europeus quanto os americanos. Os invasores não combateram exércitos europeus nem vizinhos mais fracos baseados em terra. Os australianos não conquistaram sua independência pela guerra.
A Constituição americana
Os Estados Unidos não são o único país do mundo a incluir o direito à posse de armas em sua Constituição (os outros dois são o México e a Guatemala).
Mas a linguagem usada na Constituição americana é ilimitada e foi interpretada amplamente por uma Suprema Corte que é, ela própria, extraordinariamente poderosa.
Os fundadores dos Estados Unidos afirmaram o direito “ao porte de armas” como parte de sua crença iluminista de que a existência de múltiplas fontes de poder em uma nação impediria a tirania centralizada.
É por isso que a Segunda Emenda constitucional fala na preservação de milícias locais para contrabalançar a autoridade central.
Com o passar do tempo, porém, a Segunda Emenda acabou por ser vista como garantia de um direito constitucional pessoal. Seria difícil, senão impossível, reverter essa crença arraigada.
Proteção pessoal
Desde os primeiros caçadores e pioneiros até os donos de ranchos de hoje ou os caloteiros nas grandes cidades, a tradição de possuir uma arma de fogo para sua proteção própria na natureza selvagem ou em uma sociedade selvagem é profundamente arraigada.
O policiamento era pouco e os exércitos permanentes eram raros na América até o século 20, e, graças às grandes dimensões do país, muitas pessoas viviam longe de quaisquer vizinhos que pudessem lhes prestar ajuda.
O etos do Velho Oeste volta à tona cada vez que a violência atinge mais uma comunidade. Uma consequência triste, mas inevitável dos massacres recentes vem sendo o aumento do apoio à posse de armas por cidadãos comuns, para sua proteção própria em suas casas.
Grandes interesses comerciais
A NRA gosta de enxergar-se como guardiã da liberdade prevista na Constituição, mas ela também atua como associação comercial. Reduzida a suas dimensões econômicas essenciais, a meta da NRA é proteger os fabricantes de armas de fogo e aumentar as vendas de armas.
E os negócios estão indo de vento em popa outra vez. As armas de fogo são uma indústria que hoje movimenta US$10 bilhões por ano nos Estados Unidos.
A matemática do Colégio Eleitoral (que é quem de fato elege o presidente) e o modo como são delimitados os distritos da Câmara dos Deputados dos EUA favorecem os Estados ditos “vermelhos”, que muitas vezes são menos densamente povoados, mais agrícolas e mais pró-armas. Mesmo os chamados Estados “azuis” podem agir com cautela no assunto das armas de fogo.
Basta perguntar ao senador Bernie Sanders. Seria de se imaginar que o candidato presidencial, que se descreve como socialista democrático, liderasse a cruzada em favor do controle de armas. Mas é pouco provável que isso venha a acontecer.
Apesar de ter nascido no Brooklyn e sido criado em Chicago, Sanders passou a maior parte de sua vida sendo político no Vermont.
Sim, esse é um Estado progressista. Mas é também um Estado rural, onde as armas de fogo são fonte de recreação e alimento, sem falar que evocam uma história de independência da qual o Estado se orgulha e que remete ao século 18.
Pesquisas de opinião mostram que os moradores do Vermont, como outros americanos, são favoráveis à exigência de atestados de antecedentes de pessoas que compram armas.
No entanto, mesmo essa ideia limitada se encontra parada no Legislativo estadual.
É por isso que Sanders, ao mesmo tempo em que pede uma “legislação sensata sobre armas”, acrescentou: “Temos muitos Estados neste país onde as pessoas não querem virtualmente nenhum controle sobre as armas. Se quisermos ter algum avanço, vamos ter que começar a dialogar.”
Hollywood
O setor do entretenimento vende mitos, patriotismo, conflitos, heroísmo e sangue. Os filmes e programas de TV glorificaram as armas desde o começo.
Nas décadas de 1950 e 1960 houve seriados de TV que se concentravam sobre as singularidades da arma e da munição usadas pelo protagonista. Foi o caso de The Lone Ranger (As Aventuras do Zorro, o Cavaleiro Solitário), The Life and Legend of Wyatt Earp, The Rifleman e Yancey Derringer.
Vários cineastas, de D.W. Griffith a John Ford e Quentin Tarantino, deram papéis centrais às armas. Apesar da “força” invisível de Obi-Wan ou dos golpes de faixa preta de Jackie, o mundo das telas é algo que parece saído de Straight Outta Compton.
Mira política precisa
Como não poderia deixar de ser, a NRA é o “fuzil de cano longo” da política americana. Com precisão e força letal, ela mira um tipo de alvo: qualquer pessoa ou grupo que se oponha à interpretação mais ampla possível dos direitos ao uso de armas nos Estados Unidos.
É uma estratégia bem adequada à política americana moderna, em que coalizões partidárias amplas têm menos importância que o trabalho de grupos de base amplamente financiados que atuam sobre questões precisas.
A influência exercida pela NRA no Congresso é legendária e praticamente não tem rival. É por isso que pouca ou nenhuma legislação nova é provável depois do massacre de Roseburg.
Ou depois da próxima tragédia.
Fonte: http://www.huffpostbrasil.com
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